O Centro Histórico poderia ser muito mais do que é, diz superintendente do Iphan MT
Amélia Hirata fala de trabalho solitário e da falta de apoio do Poder Público e de proprietários de casarões
É um trabalho e uma luta muita solitária". A fala é da arquiteta Amélia Hirata, superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico e Nacional, o Iphan. Cabe a ela a responsabilidade de conjuntos de casarões históricos tombados em quatro municípios do Estado. Com uma equipe reduzida, Amélia confessou que o trabalho na Superintendência é tocado sem o apoio de órgãos públicos. "Fico muito triste pela situação que está e pela dificuldade de fazer tudo o que a gente tem para todo esse trabalho. A vontade não falta, mas faltam parceiros e recursos humanos", desabafou. A arquiteta fala que não adianta somente a restauração dos casarões históricos se não houver uma utilização por parte do poder público ou sociedade. Para isso, ela conclama uma gestão compartilhada com prefeitura e governo para pensar não só a restauração dos imóveis, mas também políticas sociais para estimular a ocupação do Centro Histórico.
Confira os melhores trechos da entrevista:
Quais são as suas limitações em relação aos casarões abandonados em Cuiabá?
Às vezes, a população e até quem trabalha com patrimônio histórico tem um entendimento equivocado. O tombamento é um reconhecimento de um valor e de uma importância que tem para um coletivo. Ele não tira o direito de propriedade. O imóvel não é público. Ele continua privado. O fato de ser tombado quer dizer que ele é importante para o dono ou Iphan, mas também para vários outros atores por uma questão de identidade, de reconhecimento e de valor dessa ocupação da região centro-oeste do Brasil e inclusive para o país. Tombado o imóvel, é possível fazer vários tipos de intervenção, mas existem algumas restrições. Não tem um imóvel mais importante que o outro. Eu tenho uma leitura espacial que vai me contar uma narrativa. Todos estão no mesmo patamar, porque essa evolução da arquitetura e do traçado urbano conta uma história da ocupação do centro-oeste e da criação de Cuiabá. A gente gosta de falar, mas na prática não é exatamente o que acontece que é a gestão compartilhada. É o proprietário cuidando e o Iphan, município e Estados juntos.
O que aconteceu no caso da Gráfica Pepê, que desmoronou?
A gente tem um processo de fiscalização. Um processo administrativo nosso. Nesse caso, eu não estou falando de um proprietário. Se não me engano, é um espólio. São vários possíveis proprietários e herdeiros responsáveis. E o que acho o pior de tudo é que é uma família tradicional da cidade.
E abastada também no caso?
Isso. A gente não está falando assim de um forasteiro. Estamos falando de uma propriedade que tem toda uma história dentro de uma família. Fizemos todo o procedimento de fiscalização. Eles já sabiam que havia um risco. Até entendemos que, a partir de momento que não foi feita a preservação, eles assumiram o risco. Houve o exemplo do dia 29 de Janeiro em que a caiu a fachada. Nesse primeiro momento, vai haver uma apuração de responsabilidade. Mas, quando teve o evento, o que o Iphan pensou é que alguém vai ter que tomar uma providência, pois a fachada não caiu por inteira. Ela tem um pedaço que permanece lá. No dia que aconteceu tudo aquilo, a gente acionou a Defesa Civil e o Corpo de Bombeiros. Contatamos inclusive um dos representantes desse espólio – não sei se oficialmente ele é, mas é um dos herdeiros. Ele esteve in loco e o que deixou claro que não tinha interesse em fazer nada. O imóvel continuava em situação de risco. Não tivemos ajuda de ninguém. E o imóvel não é do Iphan. A gente teve que correr atrás de parceiros, providenciar madeira, disponibilizar a equipe técnica da Superintendência que é formado apenas por duas pessoas para atender o Estado inteiro...
Somente duas pessoas?
Duas pessoas. Um engenheiro civil e uma arquiteta. Eu sou arquiteta também, então acompanho essa demanda. Então, você imagina o tamanho do Estado. A gente está falando de quatro cidades que têm bens tombados pelo conjunto e uma equipe ínfima. Estou aqui na Superintendência há oito anos, eu nunca vi esse imóvel aberto. O Iphan teve que tomar uma medida por que, naquele momento, não tinha só perda material. Embora não seja competência do Iphan, tem uma família que mora na frente. E se aquela fachada ruísse e atingisse o casarão [de frente]? A rua é estreita, a fachada tem mais de 7 metros de altura, o leito da calçada é muito pequeno e são estreitas também. E o Iphan fez, mas o que a gente estava na expectativa é que os outros atores entrassem junto e contribuíssem com essa ação. Não é uma situação isolada. Por que a gente fala em gestão compartilhada. Que gestão compartilhada é essa que só uma pessoa trabalha, uma instituição trabalha e os outros não fazem nada?
E, pela sua fala, deu para entender que é uma questão complicada que mistura o público e o privado.
De fato, a confusão começa a partir do entendimento do que é o tombamento. Porque existe uma visão de que se tombou não é mais meu. Como existe essa confusão, o Iphan pode agir em alguns casos quando, suponhamos, há um morador que é carente e não tem condições. Eu tenho imóvel e quero pedir ajuda para o Iphan me ajudar a fazer manutenção. Só que essa condição não pode ser somente alegada. Você tem que comprovar sua condição, pois é um dinheiro público sendo investido no imóvel privado. Esse imóvel tem dono, alguém vai usufruir dele. Às vezes, a população, de uma forma geral, não entende. Não é que o Iphan não quer, mas é dinheiro público. A gente vai ter que prestar contas daquilo que foi investido, porque foi quem de fato precisa ou não por ser carente. Existe todo um procedimento de avaliação.
Sem contar que, ao contrário disso, vocês estariam incorrendo em improbidade administrativa.
Isso. Por exemplo, nós dois temos uma casa particular aqui no centro histórico. Você cuidou da sua casa, e eu não cuidei do meu. Você acha justo pegar um dinheiro que é público, teu e nosso, e investir no meu imóvel, sendo que a gente estava na mesma condição? Aí tem alguma coisa errada. A gente está falando de pessoas que não têm condições. Eu não posso falar hoje se ele [proprietários da antiga Gráfica Pepê] tem ou não tem condições, por que nem a hipossuficiência foi alegada nesse caso. Não é um caso simples. Só que não pode acontecer o que aconteceu é o jogo do empurra-empurra, ninguém é responsável por nada e o tempo, que se perde procurando culpado, é o tempo que poderia estar agindo e resolvendo problema, ou evitando o problema.
Foi aplicado multa nesse caso da Gráfica Pepê?
Não. Ainda estamos fazendo um levantamento. Só que vai ser minucioso, por que eu estou falando de perda de fachada, de quadrilhas, de cobertura e de elementos internos. Não vai ser um trabalho rápido. Vou precisar mapear aquilo que se perdeu para, a partir daí, fazer esse cálculo e verificar qual seria o valor dessa multa aplicada. Isso ainda está em trâmite. O risco iminente de desabamento está estabilizado, mas existem outros riscos físicos. Estamos trabalhando no sentido de minimizar mais ainda. Nesse meio tempo, como ele já foi autuado, ele pode pedir, quer dizer, ele poderia (não sei se a gente pode, pois não calculamos) solicitar um termo de compromisso se comprometendo a desfazer ou a melhorar. Nesse caso, é refazer praticamente tudo que aquilo que foi perdido. Então ele pode fazer isso.
O Iphan costuma aplicar muito dessas multas?
Normalmente temos conseguido resolver vários casos a partir do compromisso que o proprietário assume com a gente. Ele tem um prazo para executar e desfazer o dano. Para o Iphan, não é importante o valor da multa em si. O mais importante é que ele desfaça o dano. Não no caso da Gráfica Pepê, que é um caso atípico, mas os outros temos conseguido via termo de compromisso.
Isso é comum nos casarões? De terem vários proprietários?
Sim. Como são famílias antigas, alguns proprietários já faleceram e estão em processo de inventário. É um processo que não depende do Iphan, mas da própria família. Normalmente acontece não só em Cuiabá, mas em outras cidades que têm conjuntos tombados. É relativamente comum.
Você acredita que eles esperam o Estado bancar?
É um problema pois, se tenho um imóvel, eu tenho que fazer a manutenção como qualquer outro na cidade. Agora como existe esse equívoco com o tombamento, eles acham que é muito restritivo. “É teu, mas é como se não fosse. Se vire você Iphan, por que foi você que tombou”. É esse o entendimento de que está do outro lado. E não é isso. O tombamento é um reconhecimento do valor. Ele não é um direito de propriedade. Não foi o Iphan que valorou. Quem bateu martelo e falou que realmente tem valor histórico, arquitetônico, urbanístico e arqueológico foi um conselho consultivo. É um conselho formado com membros inclusive da sociedade civil organizada. O Iphan ajuda no montante do processo. A partir do momento que a gente tem esse reconhecimento vai ter uma restrição. Mas não significa que ele não possa fazer nada. Se ele não for hipossuficiente financeiramente e ele não comprovar isso, o poder público não pode ajudar. E aí como é que a gente fica? O papel do Iphan é de fiscalizar, mas o principal é garantir o direito à memória. Só que esse direito para gerações futuras tem que estar diretamente vinculada à gestão do município, a essa intervenção e a identificação do proprietário quanto ao valor.
Qual o estado de preservação dos casarões históricos aqui em Cuiabá?
Conheço algumas capitais que tem Centro Histórico tombado. Cuiabá poderia ser muito mais do que é hoje, se a gente for comparar em relação a aspecto físico. Tem que melhorar muito ainda. O que a gente ouve muito falar é essa questão social que é muito parecida com vários outros centros urbanos. É um trabalho de gestão, mas também de incentivo e de um trabalho de educação patrimonial. Pode acontecer de quem é de fora, ou quem é cuiabano, sabe que está no centro histórico, mas ele não se identifica com espaço. Ele não se sente parte desse Centro Histórico tombado. Se a população não se sentiu reconhecida, a tendência é que o Centro Histórico pereça por que a própria população não vai frequentar o local. Agora, essa questão da degradação, realmente, se repete várias outras em maior ou menor intensidade. Não é só no Centro Histórico de Cuiabá. Se a gente for comparar com outros, a gente não está numa melhor condição. E, dependendo do centro histórico, a gente está até no mesmo nível [de degradação]. A gente não pode se conformar que está no mesmo nível. Tem que pensar em melhorar.
Na nossa conversa, senti que vocês se sentem solitários no seu trabalho e culpabilizados por uma situação que não depende só de vocês, como se você se sente em relação a essas queixas, ainda mais como gestora do Iphan?
Não é confortável para nenhum gestor. A gente recebe inúmeras críticas. Isso é meio que comum para nós. Caiu imóvel, é tombado pelo Iphan ou não, a gente já é culpado. Já aconteceu de imóvel que nem é tombado, mas que era nossa culpa. Em vários momentos, a assessoria de comunicação tem feito notas. Mas o tempo, que eu perco justificando no momento de emergência qual é o papel do Iphan, é o tempo que poderia estar agindo. Em vários momentos, a gente deixou de atender a imprensa pois a equipe é pequena e precisávamos acompanhar e diligenciar para tirar o imóvel do risco iminente de novo desabamento. Atendemos depois a imprensa, e não por que a gente entende que vocês são menos, mas por que era uma questão de emergência. Depois que a gente faz ação, gosto de prestar esclarecimento, mas nem sempre a gente tem essa oportunidade. Trabalhar com patrimônio é solitário. O que a gente mais ouve e vivencia é sempre esse jogo de empurra-empurra. Chegamos ao momento de desgaste. Estamos correndo, correndo e correndo, enquanto isso os outros atores e responsáveis estão sentados e assistindo. Somos os únicos a correr atrás de todas as providências, como se não tivessem nenhuma responsabilidade ou envolvimento. Isso não é bom. Estou falando mais no sentindo de desabafo. Não estou culpando o município de nada.
Cuiabá está prestes a completar 300 anos e o patrimônio arquitetônico está se perdendo, a prefeitura está com uma campanha de aniversário, você acha que a condição do Centro Histórico vai fazer jus a festa?
A gente tem várias ações pontuais na região do Centro Histórico que não vai resolver todo o problema. Eu vi o slogan. Muito bonito. Realmente, ele tem uma identidade e representa, de alguma forma, a cultura material, imaterial e popular. Bom ou ruim, o que restou preservado, mesmo que situação precária e estado de arruinamento, permanece até hoje por conta do tombamento federal. Se não fosse, eu não sei o que iria existir. Se mesmo tombado, a gente tem esse tipo de evento, imagine se não fosse tombado. No ano retrasado, tivemos o desabamento da Casa de Bem Bem e agora a Gráfica Pepê. São exemplos muito tristes e ruins do ponto de vista da preservação e conservação do patrimônio. Estamos comemorando o quê? Aquilo que restou do Centro Histórico? Poderíamos estar numa situação muito mais confortável e muito mais alegre se boa parte desses casarões estivessem recuperados e ocupados. E não é a realidade. Se o cenário do Centro Histórico hoje é de quase de terra arrasada, isso não é motivo de tanta comemoração, pelo menos no meu ponto de vista. Podemos comemorar que o Centro Histórico tentou sobreviver – e está tentando sobreviver. Mas falta muito. A gente não poderia dar um presente melhor para Cidade?